Segue-me à Capela<br>– cantos que são sementes

Manuel Pires da Rocha

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Na dé­cada de 1980, no pro­grama te­le­vi­sivo «30 mi­nutos com», o en­tre­vis­tador propôs a Mi­chel Gi­a­co­metti que des­ta­casse, da sua vida de an­da­rilho das al­deias de Por­tugal, dois ou três en­con­tros com maior sig­ni­fi­cado. Des­tacou vá­rios, mas num deles de­morou-se mais – na­quele em que deu com «o Minho das can­ções dra­má­ticas, can­tadas por mu­lheres a três, quatro, cinco vozes, um fe­nó­meno muito raro na Eu­ropa – há só dois ou três países que con­servam este tipo de po­li­fonia».

Nesse tempo de re­colha – a me­lhor e mais ex­tensa re­a­li­zada até então no nosso País – os mais im­por­tados com os si­nais es­té­ticos do povo eram, quase só, os di­rec­ta­mente en­vol­vidos: ro­meiros e seus ca­mi­nhos, cei­feiros na função se­ga­dora, sa­cha­deiras, te­celãs, mães em ta­refa de em­balo, fo­liões de ter­reiro, gai­teiros das al­vo­radas. Eram estes que in­ven­tavam e go­zavam a in­venção – can­tigas e trava-lín­guas, adi­vi­nhas e sen­tenças, te­a­tros e bailes de ter­reiro. Entre a vida dura e o seu alívio, apren­diam can­tigas e me­xiam-lhes, ali a letra, aqui a mú­sica, no levar e trazer que é, do passar do tempo, qua­li­dade. Não se sabe como nem quando é que as mu­lheres que se jun­tavam para os tra­ba­lhos do campo des­do­braram os seus cantos em har­mo­nias com­pli­cadas. Não se sabe por que razão a so­lidão si­nuosa de uma voz se tornou in­su­fi­ci­ente e se fundiu na malha so­nora a que chamam po­li­fonia. Mas agra­daram-se as mu­lheres que assim can­tavam desse canto co­lec­tivo, esse canto que foi criado para ser co­lec­tivo e aco­lhedor dos di­versos tim­bres, das di­fe­rentes tes­si­turas, dos va­ri­ados vo­lumes. Sabe-se, porém, que aquele canto era par­ceiro do tra­balho, as mãos e as vozes juntas na ta­refa an­tiga de pôr hu­ma­ni­dade desde a se­men­teira à co­lheita, e ao mais que se lhe pu­desse se­guir (do aga­salho do corpo ao con­forto da bar­riga).

Quando o fas­cismo por­tu­guês criou a cul­tura do «po­brete mas ale­grete» não en­con­trou nestes cantos ma­téria para as suas en­ce­na­ções. O dra­ma­tismo dos cantos de mu­lheres do Minho, do Douro Li­toral, das Beiras todas e do Alen­tejo não tinha as cores de que a Po­lí­tica do Es­pí­rito pre­ci­sava para o de­senho da ca­ri­ca­tura da arte do povo por­tu­guês.

Passou o tempo, su­miram-se dos ca­mi­nhos as pe­gadas das cam­po­nesas, mas os cantos per­ma­ne­ceram. As vozes que os en­toam não são as das mu­lheres do campo, e os lu­gares aonde vão não são monte nem pla­nície. Chamam-se Ananda Fer­nandes, Ca­ta­rina Moura, Joana Dou­rado, Mila Bom, Mar­ga­rida Pi­nheiro, Maria João Pi­nheiro, Sílvia Fran­klim e as se­men­teiras que as ocupam, não sendo agora as do pão, são por igual tra­balho, e por igual pri­mor­dial – por ser o de nos (re)co­nhe­cermos. Can­tando a ca­pella. Fique, então, por sua conta a apre­sen­tação: as «Segue-me à Ca­pela» pi­saram o palco pela pri­meira vez em Abril de 1999. Palco não – como quem faz jus à he­rança dos cantos cri­ados no chão mais chão –, antes so­alho de um lugar de juntar gente. Que o digam elas como foi: «em Abril de 1999, num bar de Aveiro, demos o pri­meiro es­pe­tá­culo. Foi um co­meço de cantar de uma certa ma­neira, num certo sen­tido, com a von­tade pró­pria de quem quer ver nascer uma per­so­na­li­dade vin­cada nos palcos e na ce­no­grafia das vidas co­muns. Can­tamos sons an­tigos e sons novos dessa arte fu­gidia com que se em­bala os me­ninos, se en­co­menda a alma, se evoca o di­vino e o ter­reno, se es­panta a fa­diga, se anima o corpo. Can­tigas ama­du­re­cidas de vida, he­rança for­jada por tantos por­tu­gueses, na sua ex­pressão mais uni­versal e ins­tin­tiva – o canto a ca­pella das mu­lheres que se juntam para tra­ba­lhar, rezar, fes­tejar e so­nhar».

A ac­ti­vi­dade de apre­sen­tação re­gular do grupo em palco (também na Festa do Avante!, em 2003) leva à re­a­li­zação de um pri­meiro re­gisto fo­no­grá­fico em 2004. No CD Segue-me à Ca­pela é fi­xado um vasto re­por­tório de po­li­fo­nias po­pu­lares e ar­ranjos de duas can­ções de José Afonso para sete vozes de mu­lher e um per­cus­si­o­nista. Em De­zembro de 2015 é lan­çado o se­gundo disco, «San’­Jo­a­nices, Pa­ga­nices e Ou­tras Coisas de Mu­lher», cujo re­por­tório dá origem ao es­pe­tá­culo que o grupo tem vindo a apre­sentar.

No canto de Segue-me à Ca­pela con­fluem as vozes dos tempos todos, re­ve­ladas a um pú­blico que, des­co­nhe­cedor dos si­nais dos seus avós é, ele pró­prio, o chão da se­men­teira de es­pe­rança que toda a Arte me­rece ser. Ouçam-nas com atenção e verão que já se anuncia o tempo da co­lheita.




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